domingo, 30 de junho de 2013

Manifestações como eventos, flusserianamente

Tenho lido muitas análises das manifestações dos últimos dias que as qualificam como “eventos”, no sentido de que elas não teriam passado, futuro ou organização. (Cito, como exemplo, o artigo do meu amigo Caio Leonardo, O Dedo Revoltado.) Isso é próprio da sociedade pós-histórica, ou telemática, como analisada por Flusser. Mais de trinta anos atrás, Flusser percebeu que o código linear, no qual se baseia a escrita e a própria história, está sendo substituído por um código estruturado por imagens – não as imagens tradicionais, da nossa pré-história, mas imagens baseadas em aparelhos técnico-digitais. Trata-se de uma mudança de paradigma que altera a nossa percepção até mesmo do tempo e do espaço, provocando mudanças epistemológicas. Flusser considerava essas mudanças irreversíveis e dizia que elas levariam, por exemplo, ao fim da política, pelo fim da distinção entre público e privado.

Infelizmente não tenho tempo para desenvolver a fundo, aqui, um estudo de Flusser, mas remeto os leitores do meu blog ao terceiro capítulo do meu livro, Vilém Flusser: a tradução na sociedade pós-histórica, especialmente entre as páginas 208 e 225. Aqui eu vou apenas elencar alguns pontos que acho especialmente relevantes para que se possa iniciar uma discussão sobre as manifestações que estão ocorrendo no Brasil (e no mundo, embora haja algumas diferenças entre umas e outras) em termos flusserianos.

Antes, uma definição: “sociedade telemática” seria a convergência das imagens técnicas (produzidas por aparelhos) com os meios de comunicação.

1) A aplicação do conceito de paradigma de Thomas Kuhn às transformações pelas quais estamos passando em nossa sociedade desde o final do século XIX, com a invenção da fotografia, e, principalmente, a partir da disseminação dos computadores. Uma mudança de paradigma implica alterações tremendas, inclusive em termos epistemológicos. A forma como entendemos o mundo – e como atuamos no mundo - está mudando de modo irreversível.

2) A análise de Flusser do fim da política, diante do fim da distinção entre público e privado. Já na década de 80 Flusser dizia:

As teclas não serão mais sincronizadas, mas ligadas entre si por elos reversíveis. Graças a tais elos (por exemplo, cabos), toda tecla será, em futuro não muito distante, ligada a todas as teclas. Poderá receber de todas as teclas e emitir rumo a todas as teclas. [...] Em tal situação aperfeiçoada do tatear [...], todos tatearão em concerto com todos. Por certo, McLuhan está enganado. Isto não pode ser chamado de “aldeia cósmica”, na qual todos publicam o seu privado e privatizam o público proposto por todas as privacidades. Isto não é mais possível onde não há mais privado a ser publicado e onde não há mais praça pública na qual seria possível publicar-se o privado.

3) A qualificação que ele aplica de "superficialidade" à atual sociedade telemática. Para Flusser, a nova epistemologia desconfia de tudo o que é “profundo”, pois a visão “profunda” revela o vazio ou o óbvio. É a visão superficial que leva à experiência do belo e da aventura. Flusser diz também que a sociedade telemática não está interessada em teorias, mas sim em estratégias.

4) A definição de Flusser do "novo homem", de um de seus últimos textos, de 1989:

Esse novo homem que nasce ao nosso redor e em nosso próprio interior carece de mãos. Ele não lida mais com as coisas, e por isso não pode mais falar de suas ações concretas, de sua práxis ou mesmo de seu trabalho. O que lhe resta das mãos são apenas as pontas dos dedos, que pressionam o teclado para operar com os símbolos. O novo homem não é mais uma pessoa de ações concretas, mas sim um performer. Homo ludens, não Homo faber. Para ele, a vida deixou de ser um drama e passou a ser um espetáculo. Não se trata mais de ações, e sim de sensações. O novo homem não quer ter ou fazer, ele quer vivenciar. Ele deseja experimentar, conhecer e, sobretudo, desfrutar. Por não estar interessado nas coisas, ele não tem problemas. Em lugar de problemas, programas. E mesmo assim continua sendo um homem: vai morrer e sabe disso.

5) A análise de que, nas redes da sociedade telemática, a maior parte das informações corre em fios dominados por emissores centrais e controlados por feixes irradiadores. Tal estrutura pode ser qualificada como “fascista” (de fascis, feixes) e leva à pulverização da sociedade, pois cada indivíduo se comunica diretamente com o aparelho.

Todos recebem imediatamente um número colossal de informações, mas todos recebem o mesmo tipo de informação, não importa onde estejam. Ora, nessa situação todo diálogo se torna redundante.

Entretanto, Flusser percebe “fios embrionais que correm horizontalmente através dos feixes”. Esses fios transversais ligam os indivíduos dispersos em diálogos. A questão é politizar a discussão nessas redes transversais. Esse novo engajamento político não se volta contra as imagens, pois nasceu no interior da revolução técnica atual e não se opõe a ela. A metáfora do “cérebro cósmico” é a que Flusser escolhe para retratar essa sociedade: cérebro que reuniria as pessoas dispersas, conectando-as como “células irradiantes de informação”.

Para mim, a grande surpresa das recentes manifestações foi as redes sociais (produtos do novo paradigma) terem encontrado as ruas (canal de expressão do paradigma antigo, baseado na história) e terem "tomado" as ruas com seu novo estilo (baseado no novo paradigma). É esse choque do novo e do velho que me entusiasma e me faz pensar que haja a possibilidade de, como dizia Flusser, "politizar as redes".

Nenhum comentário:

Postar um comentário